Uso de Inteligência Artificial no cordel revolta poetas: “crime”, “fraude” 444q43
Autores de poesia tradicional resistem ao uso da máquina para criação de versos diante do que parece ser inevitável 215o6i
Cada vez mais usada na produção artística, a Inteligência Artificial (IA) encontra resistência entre poetas cordelistas, como mostramos nesta reportagem, enquanto aumenta o uso da máquina para gerar ilustrações de capa, como descreveremos em outra matéria, amanhã.
Poetas que escrevem cordel – poemas populares nordestinos, impressos em folhetos e vendidos a preço baixo – estão irritadíssimos com o uso de Inteligência Artificial (IA). A repulsa parece predominar, mas há quem use os recursos da máquina em alguma fase do processo criativo, além de experiências pedagógicas. 6yg2s
O tom de reprovação pode ser medido por opiniões como a do cearense Klévisson Viana, referência em escrita, ilustração e edição de cordéis. Com 36 anos de atividade, publicou mais de 200 folhetos e 50 livros, tendo lançado mais de uma centena de poetas pela Tupynanquim Editora, especializada em cordéis.
“Não vejo nenhuma necessidade de lançar mão desses artifícios, desses truques, desses malabarismos para enganar o leitor. Acho uma fraude”, diz Viana sobre o uso de IA. “É um corpo sem alma, mesmo que os versos fiquem bonitos”, critica o artista porque tem “um nome a zelar”.
Vai na mesma linha Paiva Neves, 61 anos, cordelista, professor e doutorando de Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza. Ele é “radicalmente contra” o uso da IA para produzir cordéis porque “perde o calor de uma coisa essencialmente humana”.
Poeta alerta para “higienização” dos versos padronizados n485x
A substituição da criação pela máquina arrepia poetas como Antônio Barreto, de Salvador, com mais de 200 folhetos de cordel publicados. “A inteligência artificial não tem coração, não tem sentimento, não tem intuição, não tem alma. É um crime, dói no coração.”
Ele fez experiências com IA, desaprovou totalmente e diz que jamais vai usá-la em seu processo criativo. “Outro dia me mandaram um cordel feito por inteligência artificial e na primeira estrofe achei trinta e cinco erros”, conta.
O cordelista e pesquisador Marco Haurélio, baiano radicado em São Paulo, classifica como “abjeta” a padronização dos poemas. As variações de qualidade são indispensáveis à evolução de qualquer produção artística. “Ideais de beleza, harmonização, não servem à arte, a arte se rebela”, defende o poeta.
IA para pesquisa, mas sem substituir o humano 5z6i3d
Apesar dos rechaços, há quem utilize a IA como ferramenta auxiliar. Julie Oliveira, cordelista, pedagoga e editora de Fortaleza, usa “em momentos específicos, principalmente na fase de pesquisa, quando preciso entender melhor um tema ou buscar referências históricas para um cordel. Mas nunca delego à máquina a criação propriamente dita.”
Márcio Fabiano, de Ribeirão Preto, interior paulista, é cordelista e mantém uma pequena editora do gênero. “Uso para procurar sinônimos, como se fosse um dicionário. Para criar no meu lugar, não. As ideias são minhas. Uso também para investigar temas.”
Jefferson Campos, de Natal (RN), poeta e xilogravurista, não usa IA, mas não é contra. Para ele, os motivos de quem utiliza a ferramenta são economia de tempo, dinheiro e falta de conhecimento. “Tanto o poeta quanto o ilustrador devem ser honestos com quem consome sua arte e informar que foi feito com inteligência artificial”, pede Campos.
Na Bahia, projeto educativo usa cordel e IA 4r4e3v
Na Península de Itapagipe, periferia histórica de Salvador (BA), o projeto Cordel 2.0 reúne 70 pessoas, de crianças a idosos, para criarem uma coletânea de cordéis auxiliada por IA. O casal de educadores Carlos Javier Vidal Guerreiro e Celeste Maria Farias são os idealizadores do que chamam de “uma tentativa honesta e crítica”.
A metodologia procura estabelecer os limites e possibilidades dos humanos e das máquinas na produção de cordéis. A IA ajuda, por exemplo, a encontrar uma rima ou métrica. Os coordenadores sabem que, nem sempre, as sugestões são as melhores, mas acatar ou modificar as informações geradas pela máquina é uma decisão humana.
“Neste sentido, a IA pode ter seu lugar no processo de escrita sim, porém, em uma fase tardia, onde são feitos ajustes”, explica Guerreiro. “Não podemos cair no deboche dos habituais e legítimos questionamento da classe artista”, alerta Farias.