Família poliamorosa usa planilha para conciliar sexo e tarefas: 'Usam a Bíblia para nos julgar' x430
Ao Terra, Kel, Bruno, Diego e Jennifer falaram sobre o arranjo familiar que desafia convenções tradicionais 1d472g
Censo do IBGE indica aumento de 1,6% nos casamentos homoafetivos em 2023, enquanto a família Macettare, vivendo o poliamor, ganha destaque ao desafiar convenções e enfrentar preconceitos, mantendo harmonia e respeito em suas relações.
O amor precisa necessariamente seguir uma fórmula? Desde criança, somos ensinados que é comum que duas pessoas se apaixonem e em a constituir família. Entretanto, de um período histórico para outro, o conceito de família vem ando por profundas transformações. Até a Constituição Brasileira, que até 1967 apenas reconhecia a família por vínculo de matrimônio entre homem e mulher, sofreu alterações ao longo dos anos. e6j1h
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O último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado no meio de maio de 2025, aponta que os casamentos homoafetivos cresceram 1,6% em 2023 e chegaram a 11.198 registros, um recorde. O número é considerado o maior desde 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) garantiu o direito ao casamento civil entre pessoas que integram a comunidade LGBTQIA+.
Em Florianópolis, Santa Catarina, uma família desafia as convenções e regras sociais. Conhecida como família Macettare, eles são exemplos do poliamorismo --uma filosofia de vida não monogâmica. Nela, defende-se que o ser humano pode amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo e, com consentimento, ter relações amorosas entre eles ou com outros.
‘Conheça a família Macettare’ 14411k
Os Macettare são compostos por Kel e Bruno, que estão juntos há quase duas décadas e são pais de dois adolescentes. Além deles, há Diego, namorado de Kel, e Jennifer, namorada de Bruno. Segundo relatado ao Terra, em entrevista exclusiva, todos eles convivem harmoniosamente, compartilhando afetos e os desafios da vida cotidiana.
“De início, foi um pouco complicado [morar junto]. Exatamente por essa coisa de atenção... Eu tive que me dividir entre três pessoas. E aí, nessa fase, foi um pouco complicadinho”, disse Kel, referindo-se a questões afetivas. “Morar com uma pessoa, dividir a tua maneira de viver com uma pessoa, já é difícil. Agora, tu imagina com três...”, complementou Diego, namorado dela, apontando questões mais práticas do dia a dia, como tarefas domésticas.
Para garantir que as tarefas comuns de casa não se tornassem um problema na relação poliamorosa, foi necessária a criação de uma tabela. Até mesmo Jennifer, que ainda não mora no local, mas a bastante tempo lá, está incluída nesta planilha. “A vantagem é que tem gente pra ajudar na organização também. Porque quando a gente fala: ‘vamos fazer’, todo mundo faz, todo mundo ajuda e a gente termina a limpeza rapidinho”, disse Kel.
Também foi idealizada uma planilha do afeto para organizar as intimidades da família, assim ninguém se sente preterido na casa. “A gente tem uma tabela. Nela tem parte das funções domésticas, mas também a parte afetiva [...] Tem dias que são pra mim e para Kel e tem dias dela com o Bruno”, apontou Diego.
O início: “Achei um absurdo ele querer me dividir com outros” 421t5p
A família Macettare começou na adolescência de Kel e Bruno, no fim dos anos 1990. Eles se conheceram por causa do trabalho do pai de Kel, se casaram e tiveram seus dois filhos, hoje dois adolescentes.
Bruno, mesmo vindo de uma família em que seus pais eram monogâmicos, se considera poliamorista desde sempre. Para ele, nunca foi uma dúvida que era possível amar mais de uma pessoa. Kel, por sua vez, teve dificuldades quando o marido abordou o assunto. Criada em berço religioso, ela foi ensinada sobre a monogamia e achava o oposto inaceitável.
“A minha família era evangélica, eu tinha aquela criação mais fechada. Minha mãe não me deixava fazer muitas coisas. Quando ele falou sobre isso, primeiro eu achei um absurdo ele querer me dividir com outras pessoas. Eu achei que ele não me amava”, comentou Kel.
Após anos de diálogo, o casal começou a se colocar à disposição de novas experiências, como visitar casas de swing. A primeira experiência resultou em sentimentos contraditórios, mas logo se encontraram no jogo. Com mais alguns anos de conversa, assumiram-se poliamoristas. “No dia da casa de swing eu gostei, mas depois eu fiquei bem mal porque ia contra tudo que eu tinha aprendido. Então comecei a me questionar. Por que é errado? Se ele está feliz e eu gostei, qual o problema? É errado pros olhos dos outros. Mas os outros não precisam nem saber o que a gente tá fazendo. É o nosso relacionamento.”
Desde então, os poliamoristas já tiveram alguns namorados, uns mais sérios que outros. A dona de casa, inclusive, ou por um período em que manteve dois namorados simultâneos. Os atuais, Diego e Jennifer, chegaram à família há pouco mais de um ano. Como convivem na mesma casa, têm muito contato com os filhos do casal, que sabem da dinâmica.
“"Eles sabem que são nossos namorados e não têm problemas com isso. Eles [Diego e Jennifer] começaram a frequentar a nossa casa como amigos, o Diego ficou muito próximo do mais novo e até já treinou com o mais velho. A questão evoluiu, então, quando houve essa ‘mudança’, as crianças já conheciam bem os dois e a gente [eu e Bruno] explicou que iam morar com a gente. Foi algo lento, mas natural”, disse Kel.
O preconceito: “Usam a Bíblia para julgar a gente” 3n335e
Os quatro integrantes da família Macettare se conheceram, pois trabalham com criação de conteúdo adulto para as redes e, antes de firmar compromisso, chegaram a gravar algumas vezes juntos.
Antes dessa carreira, Bruno era corretor de imóveis, Kel era dona de casa, Jennifer diz que trabalhava em regime de CLT, e Diego, por sua vez, é o único que ainda se divide entre a influência e o trabalho com massagem. No Instagram, ele mantém um perfil profissional, inclusive.
Como parte da profissão de influenciador, eles costumam compartilhar muita da rotina como família na internet, o que, por muitas vezes, se provou uma tarefa delicada e nada digesta, visto que recebem comentários cruéis com frequência.
Em muitos casos, os críticos sugerem que os filhos estão envolvidos na criação de conteúdo e, em determinada ocasião, insinuaram que a família Macettare gravou vídeos inapropriados com o gato da casa --o que não é verdade. “As pessoas usam muito a Bíblia como escudo para julgar a gente, para dizer que é errado. Eles usam muito mais o nome do Demônio, do Diabo do que Deus nos comentários”, disse Diego. “O que a gente faz não é errado. Ninguém está sendo afetado ou abusado emocionalmente. Está todo mundo consentido. Tem honestidade, tem amor, tem respeito entre nós”, completou.
“Teve até comentários falando: ‘Ó, os meninos também se pegam’. Como assim? Por que os meninos se pegam? Só porque a gente vive um relacionamento desse? [...] Eu acho muito absurdo as coisas que as pessoas chegam a falar. Não é porque a gente trabalha com conteúdo e que a gente tem um relacionamento assim que eles [filhos] estão envolvidos nisso. A gente tem uma vida pessoal, a gente tem uma família também”, defendeu Jennifer.
“A gente trabalha com isso há anos, mas nunca os envolvemos com nada. [...] É muito difícil quando a gente vai fazer qualquer gravação aqui em casa, quando fazemos, eles não estão, mas sempre rola em algum lugar ou estúdio para evitar isso. Em todos esses anos, eles nunca tiveram contato com a nossa profissão. Eles sabem, mas estão bem distantes, somos muito cautelosos com isso”, argumentou Bruno.
Além das críticas externas, cada integrante convive com um tipo de crítica interna familiar. Diego e Jennifer parecem ter mais aceitação, tanto pela carreira escolhida quanto pelo modo de família que escolheram para ter. Kel e Bruno, por sua vez, alegam ter enfrentado mais resistência. O ex-corretor, aliás, parece não manter muito contato com parentes próximos. Kel tem relação, mas precisou batalhar por respeito.
“Minha mãe é mais relutante, mas ela me respeita muito. [...] A gente, às vezes, almoça em família e tal, ela tá sempre com a gente. E a gente frequenta a casa dela, eles [namorados] vão lá, frequentam aos sábados, ela faz almoço pra gente, eles tão lá sempre com a gente. Mas, mesmo assim, ela ainda é mais relutante. Só que ela me respeita”, relatou ela.
O futuro: “A lei não nos apoia” c2j5b
Como a família já contempla dois filhos, gravidez não é algo que planejam para o futuro. Talvez, nos próximos meses, Jennifer e a morar na casa Macettare também, mas é um processo que deve correr com naturalidade, ou seja, de forma orgânica e sem pressão. Uma possível vontade, talvez, seja, em um futuro --distante ou próximo-- oficializar a união.
“Pelo que sei, a lei não permite que a gente tenha união estável; eles não reconhecem esse modelo de família, que é dado como poligamia”, avaliou Bruno.
Conforme a legislação brasileira, “a poligamia é proibida e está prevista no Código Penal no artigo 235, que contempla sanção para casos de bigamia”. De forma popular, quem é casado e contrai casamento com outro, por consequência, comete crime de bigamia. A prática é ível de punição com pena de até seis anos de prisão.
Ainda assim, Kel cogita uma solução alternativa: “Talvez uma cerimônia pequena e intimista, mas tudo em seu tempo”. Enquanto isso, a família Macettare segue organizando seus dias com tabelas, afeto e muito respeito. Desafiando convenções, mas também inspirando novos modos de viver o amor.