Afinal, quem inventou o avião? A resposta provavelmente não é a que você pensou 355i24
BBC News Brasil fez essa pergunta a oito especialistas em aviação de quatro países, que explicaram os argumentos dos dois lados — e acabaram levando a reportagem a uma direção inesperada. 4a2n1q
O brasileiro Alberto Santos Dumont fez o primeiro voo da história homologado pela Federação Aeronáutica Internacional. 6hev
Em 12 de novembro de 1906, em frente a uma multidão em Paris, ele cruzou o campo de Bagatelle a bordo do 14-bis, confirmando que uma máquina mais pesada que o ar era de fato capaz de voar.
A essa altura ele já era celebrado como pioneiro da aviação na Europa. Vivia cruzando Paris de balão, tinha ganhado um prêmio por ter voado com um dirigível em volta da torre Eiffel e estampado capa de jornal.
Nada mais natural, então, do que dizer que foi ele que inventou o avião, certo? Não é tão simples assim.
A polêmica já dura mais de um século: o Brasil considera Santos Dumont o pai da aviação, enquanto os Estados Unidos defendem — e espalham para o mundo — que o título é dos americanos Orville e Wilbur Wright, os irmãos Wright.
Quem tem razão? A BBC News Brasil fez essa pergunta para oito especialistas em aviação de quatro países, que explicaram os argumentos dos dois lados — e acabaram levando a reportagem a uma direção inesperada.
Santos Dumont: o primeiro voo público 21345f
A capital sa não foi palco do voo do 14-bis por acaso. Paris naquela época era o centro pulsante da modernidade que ditava o ritmo do fim do século 19 e início do século 20.
Tinha boas escolas de engenharia e concentrava capital suficiente para financiar pesquisas em metalurgia, mecânica, física, química.
Com o desenvolvimento de novos tipos de material e de motores cada vez mais potentes, a sensação naquela época era de que seria questão de tempo até alguém conseguisse voar com uma máquina mais pesada que o ar, diz o historiador Jean-Pierre Blay.
Foi essa atmosfera que levou Santos Dumont a Paris em 1892. O brasileiro sempre foi fascinado por máquinas voadoras, e resolveu deixar o Brasil e cruzar o Atlântico depois de receber um adiantamento da herança pelo pai, que era filho de um joalheiro francês e havia feito fortuna em Minas Gerais plantando café.
Blay, que há duas décadas pesquisa sobre Santos Dumont, disse que ele se integrou à vida parisiense com facilidade.
"Já falava fluentemente francês e, pela fortuna dele, não teve dificuldade de se enraizar na vida mundana de Paris", afirma o historiador.
Foi um dos primeiros membros do aeroclube da França, ficou amigo de celebridades da época, como o joalheiro Louis-Cartier, com quem frequentava o lendário restaurante Maxim's.
Em Paris, Santos Dumont ou anos experimentando com balões e dirigíveis até finalmente chegar no 14-bis.
E foi com ele que, em 12 de novembro de 1906, no campo de Bagatelle, voou 220 metros diante do público, no que foi registrado pela Federação Aeronáutica Internacional como o primeiro recorde de voo da história.
No ano seguinte, Santos Dumont lançou outro modelo de avião, batizado de Demoiselle, o primeiro ultraleve e o primeiro avião produzido em série no mundo.
Irmãos Wright: das pradarias de Ohio aos voos pirotécnicos na Europa 3l1k34
Foi depois de tudo isso, em 1908, que Orville e Wilbur Wright apareceram reivindicando terem voado antes do brasileiro, em 1903.
A comunidade da aviação sa encarou os dois inicialmente com ceticismo. Por causa da correspondência entre membros de aeroclubes na Europa e nos Estados Unidos, sabia-se que os irmãos Wright — que tinham uma loja de bicicletas antes de se tornarem inventores autodidatas — também estavam na corrida para desenvolver o primeiro avião, mas havia quatro anos que eles estavam em silêncio, sem mandar notícias sobre seus avanços.
A justificativa que eles deram foi de que estavam esperando a aprovação de patentes e não queriam correr o risco de que alguém roubasse suas ideias.
Segundo eles, o Flyer teria ficado no ar por 59 segundos e percorrido 260 metros em 17 de dezembro de 1903 em Kitty Hawk, na Carolina do Norte.
A falta de provas irrefutáveis sobre o que exatamente aconteceu naquele dia faz dele o primeiro grande ponto de antagonismo entre os que defendem o pioneirismo dos Wright e os partidários de Santos Dumont.
Só cinco pessoas teriam visto o avião no ar, sendo três delas salva-vidas que trabalhavam em uma estação ali perto. Entre as poucas evidências do episódio há um telegrama, poucas fotografias e o diário de Orville Wright.
Vozes como a do físico Henrique Lins de Barros, que é especialista na vida e obra de Santos Dumont, dizem que o próprio relato de Orville dá munição para questionar o primeiro voo do Flyer.
No registro sobre aquele dia, o americano escreveu que o vento soprava a cerca de 40 km/h, o que, segundo o cientista brasileiro, seria suficiente para levantar o avião.
"A potência do motor não era suficiente, ele só saiu do chão por causa do vento", argumenta ele, que é ex-diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins.
Quem defende os Wright rebate essa crítica ao Flyer argumentando que eles colocaram no ar versões aprimoradas dele ainda antes de o 14-bis cruzar o céu de Paris, em 1904 e 1905.
"O que aconteceu naquela manhã [de 1903]: foi a primeira vez que os irmãos Wright voaram bem o suficiente para se convencerem, no fundo do coração deles, de que haviam resolvido o problema", diz Tom Crouch, curador emérito do Museu Nacional do Ar e Espaço, que é parte do instituto Smithsonian, e autor de vários livros sobre os Wright.
"Eles ainda tinham muitos ajustes a fazer, mas tinham construído um avião, e ele tinha voado", completa.
Em 1905, segundo o historiador americano, os dois já tinham um avião "funcional", capaz de decolar, se manter no ar e pousar em segurança.
Todos esses voos também foram feitos em segredo, sem público, nas pradarias do Estado de Ohio, onde eles viviam.
Três anos depois, os Wright entraram com tudo numa campanha para serem reconhecidos como os primeiros.
Viajaram para Europa numa espécie de turnê, fazendo mais de 200 voos demonstrativos na França e na Itália entre 1908 e 1909, percorrendo quase 100 quilômetros em alguns deles.
A agem dos dois pelo continente vira uma espécie de espetáculo, diz o historiador Jean-Pierre Blay, e em determinado momento membros da aristocracia europeia — ingleses, belgas, italianos, espanhóis — chegam a pedir para sentar no Flyer e voar ao lado de Wilbur Wright.
"Era uma honra. Aquilo era um show", afirma.
É nessa atmosfera que figuras como o capitão Ferdinand Ferber, um pioneiro da aviação sa, começam a abraçar a defesa dos Wright, argumentando que tudo aquilo não podia ter sido inventado do dia pra noite.
A catapulta o5051
Mas as versões aprimoradas do Flyer que voaram na Europa tinham um atributo que é central no debate Santos Dumont vs. irmãos Wright: elas precisavam de uma catapulta para serem lançadas.
O avião desenvolvido pelos Wright não tinha rodas. Para decolar, ele precisava ser acoplado a um trilho, de onde era impulsionado por um dispositivo com pesos de ferro que despencavam de uma torre e davam um empurrão na aeronave para que ela levantasse voo.
O fato de o Flyer não decolar sozinho é apontado por críticos dos irmãos Wright como uma evidência de que o motor do avião não tinha autonomia.
"Por isso, não é um avião, é um planador motorizado, um motoplanador", diz o arquivista Rodrigo Visoni, que é tenente da aeronáutica e especialista em história das invenções brasileiras.
Tom Crouch argumenta que os Wright usavam a catapulta por causa do relevo acidentado do local em que testavam os aviões, em regiões de pasto em Ohio, onde não havia um espaço plano amplo o suficiente pra que eles pudessem decolar da forma tradicional.
O ex-mecânico de aviões Lito Sousa, criador do canal Aviões e Música no YouTube, está no time dos que acreditam que o avião dos irmãos americanos tinha sustentação, mas argumenta que "o feito do Santos Dumont é muito maior" porque o 14-bis, "com suas rodinhas de bicicleta, saiu do chão pela própria força do motor, sem auxílio externo".
O britânico Paul Jackson, que foi editor-chefe por 25 anos de uma das principais publicações de aviação do mundo, a Jane's All the World's Aircraft, está do lado dos que criticam a catapulta.
Para ele, ela é uma evidência de que o avião que os Wright apresentaram ao mundo em 1908, apesar de "manobrável", era "incompatível com o uso e a funcionalidade de um avião".
"Os irmãos Wright só se preocupavam com o que pudessem demonstrar em suas aeronaves que fossem patenteáveis. Eles entraram nisso por dinheiro", opina.
"Foram um dos últimos aviadores a colocar rodas em suas aeronaves e possibilitar que elas pousassem em qualquer pista, decolassem de qualquer pista e retornassem ao ponto de decolagem", completa.
Uma construção coletiva 3g121l
Jackson não está, entretanto, de nenhum dos dois lados da briga. Ele entrou nela por acaso, em 2013, quando virou alvo de ataques inflamados depois de publicar um editorial sobre outro pioneiro da aviação, Gustav Weisskopf, um alemão radicado nos Estados Unidos que teria voado em 1901, antes dos Wright.
"Recebi uma enxurrada de insultos de pessoas que apoiavam os irmãos Wright dizendo: 'Como você ousa dizer que alguém poderia superar os irmãos Wright no ar!'", conta.
Santos Dumont e os irmãos Wright não são os únicos a reivindicar pioneirismo. Além de Weisskopf — ou Whitehead, na versão americanizada —, há o neozelandês Richard Pearse, em um voo em março de 1903, além de outros nomes.
Por isso, para Jackson, a discussão toda sobre quem inventou o avião é meio sem sentido.
"Não houve uma 'invenção'. Ninguém acordou de uma hora pra outra um dia, fez um desenho e disse: 'Ah, este é o avião que vai funcionar'", ele argumenta. "Foi um esforço coletivo de dezenas, uma multidão de pessoas, todas trabalhando juntas."
O britânico não está sozinho. Em uma dezena de entrevistas, a reportagem da BBC News Brasil ouviu mais de uma vez esse ponto de vista, entre eles do historiador Jean-Pierre Blay e do aviador Lito Sousa.
"Foi um processo que foi ando de geração a geração, em que um foi construindo em cima do que o outro tinha descoberto", pontua Sousa, que destaca o trabalho do alemão Otto Lilienthal, que no século 19 aperfeiçoou a aerodinâmica dos planadores.
Demoiselle, o 'código aberto da aviação' e as brigas de patentes dos Wright 4y4qt
Ele defende, contudo, que Santos Dumont foi "o verdadeiro pai da aviação", dando uma contribuição fundamental para o setor com o Demoiselle, que acabou sendo o primeiro avião produzido em série no mundo.
"Ele é praticamente um avião mesmo, um ultraleve, que decolava e pousava sozinho", diz o aviador.
O brasileiro publicou todas as especificações da aeronave para quem quisesse reproduzi-la ou aprimorá-la, uma postura meio "código aberto da aviação", ilustra Sousa, pegando emprestado a expressão hoje usada no mundo da tecnologia para os softwares que têm o código-fonte disponibilizado pelos desenvolvedores.
A postura é diametralmente oposta à dos irmãos Wright, que depois daquela temporada na Europa aram anos emaranhados em brigas de patentes.
"Tudo o que a aviação tirou dos irmãos Wright foram mandados judiciais de advogados", diz Jackson.
Um dos alvos desses processos foi o pioneiro da aviação Glenn Hammond Curtiss, que fez parte de um grupo de pesquisa financiado por Alexander Graham Bell, o Aerial Experiment Association, com o objetivo de desenvolver aviões e foi acusado de infringir uma patente dos Wright.
"Eles odiavam o Curtiss desde o início, porque ele os precedeu em um voo público em 1908", diz Marcia Cummings, parente do aviador. Em 4 de julho daquele ano, Curtiss voou diante de mais de mil pessoas em Hammondsport, no Estado de Nova York, durante uma competição.
Ela, Paul Jackson e o engenheiro aeronáutico Joe Bullmer têm um blog em que, entre outros assuntos, questionam uma série de pontos do voo dos Wright de 17 de dezembro de 1903, ressaltando que o relato das poucas testemunhas presentes muitas vezes contradizem o próprio relato dos irmãos.
Além disso, com outros parentes de pioneiros da aviação, Cummings vem se dedicando nos últimos anos a reunir documentos que provem, segundo ela, que os irmãos trabalharam para apagar da história figuras importantes da aviação.
Amanda Wright Lane, que é parente dos Wright e cuida do legado dos tios-bisavôs, rebate a acusação e diz não achar que Orville (Wilbur morreu em 1912) "iria intencionalmente atrás de uma pessoa para prejudicá-la". "Mas ele defenderia o que ele e Wilbur fizeram e a verdade do que eles fizeram", ela acrescenta.
A ciência do reconhecimento 2462y
Toda essa discussão ainda é restrita a poucos círculos — basicamente fanáticos por aviação. As crianças americanas continuam aprendendo na escola a versão da história em que apenas os irmãos Wright são os protagonistas, narrativa reproduzida em diversos outros países.
Há mais de uma década, pessoas como Marcia Cummings, Paul Jackson, Joe Bullmer e o historiador da aviação John Brown, autor de um livro sobre Gustav Weisskopf, estão mergulhados em fontes primárias como fotos, cartas e documentos na esperança de trazer à tona o que eles enxergam como a verdade.
Na visão de Jackson, o trabalho deles é um entre tantos que nas últimas décadas têm jogado luz sobre figuras injustiçadas da história da ciência, que costuma premiar com reconhecimento aqueles que estão "no lugar certo na hora certa e sabem fazer propaganda de si mesmos".
"Quem leva o crédito ainda são as pessoas que têm nome — e os advogados mais bem pagos", ele opina.
"Se você olhar para a maioria das invenções do século 20 e do 19, elas geralmente são atribuídas às pessoas erradas", defende o especialista em aviação.
"[Guglielmo] Marconi não inventou o rádio, [Alexander Graham] Bell não inventou o telefone."
No caso de Bell, a grita surtiu efeito, e até o Congresso americano reconheceu, em 2002, que apesar de Bell ter patenteado o telefone, o aparelho foi na verdade inventado por Antonio Meucci — o americano teria roubado as ideias do inventor italiano.
"Acho que é preciso um fluxo constante de informações, e pessoas como eu e meus amigos apontando na direção certa", ele reflete, dizendo esperar "viver o suficiente" para ver os pioneiros da aviação apagados da história receberem o devido crédito por suas contribuições.
O epílogo de Santos Dumont 2n1l4c
No caso de Santos Dumont, um detalhe importante de sua biografia ficou desconhecido do grande público por muito tempo, mas por outras razões.
Por muitos anos acreditou-se que ele teria morrido de "colapso cardíaco", como atestava sua certidão de óbito.
Só em 1944 veio a público que o brasileiro se suicidou em um quarto do Hotel de La Plage, no Guarujá, no litoral de São Paulo, em 23 de julho de 1932.
O aviador não deixou um bilhete ou anotações que explicassem por que ele decidiu tirar a própria vida.
Uma das hipóteses é a de que ele teria entrado em depressão ao ver sua invenção se transformar em uma máquina de matar na Primeira Guerra Mundial e posteriormente na Revolução Constitucionalista de 1932, que estava se desenrolando quando ele viajou ao litoral paulista.
Em um artigo, Henrique Lins de Barros faz referência ao livro As lutas, a Glória e o Martírio de Santos Dumont, que conta que, diante das notícias sobre o conflito, Santos Dumont teria desabafado por telefone ao amigo professor José de Oliveira Orlandi: "Meu Deus! Meu Deus! Não haverá meio de evitar derramamento de sangue de irmãos? Por que fiz eu esta invenção que, em vez de concorrer para o amor entre os homens, se transforma numa arma maldita de guerra? Horrorizam-me estes aeroplanos que estão constantemente pairando sobre Santos."